Por que damos valor às vidas humanas? Por que achamos que o mundo deva ser justo? Por que devemos nos importar com a natureza? Quais as motivações das pessoas? E que nome dar a todas as coisas da vida que não entendemos, não sabemos descrever, mas com as quais temos de lidar o tempo todo?




Sobre o uso incorreto da língua

por Leo

Há várias vezes que discutimos sem muito resultado sobre a língua (linguagem, idioma) e o que é correto, acho que finalmente consegui expressar o que penso a respeito de maneira clara.

Há duas coisas relacionadas porém completamente diferentes em natureza designadas pela expressão "língua portuguesa".

Uma delas refere-se a um sistema de palavras e significados usado na comunicação e pensamento de uma grande população, uma convenção implícita, o que as pessoas falam, ouvem, escrevem e entendem na prática. Seria um sistema bastante difícil de se formalizar, uma vez que cada um tem uma versão um pouco diferente para si, mas cujas diferenças não chegam a impossibilitar a comunicação (embora possam torná-la difícil às vezes).

A outra refere-se a uma convenção institucionalizada, formalizada, oficial. É um conjunto de palavras, expressões e regras que estabelece o padrão culto da língua. Não sei exatamente quem estabelece, se algum orgão do Estado, a Academia Brasileira de Letras, ou algum outro tipo de instituição. O fato é que se estabelece uma formalização oficial do padrão culto da língua. Seria um pouco relevante saber quem de fato estabelece este padrão, para se saber qual seu status oficial, se é um padrão estabelecido em lei (e que portanto tem força legal e portanto das convenções oficiais da nossa sociedade) ou se é uma convenção estabelecida por alguma comissão autônoma sem força legal oficial, o que faria com que fosse apenas uma referência estética, mas não parte das convenções oficiais.

A primeira língua é ensinada no cotidiano, a segunda nas escolas. A primeira tem uma dinâmica autônoma, quase como ocorre na natureza, em que as palavras mudam lentamente de forma e significado e novas formas surgem o tempo todo, se propagando ou se extinguindo. A segunda é determinada por uma comissão, que pode ou não ter a intenção de aproximá-la da primeira. A primeira é requerida para que as pessoas se comuniquem, a segunda é requerida nos documentos oficiais, concursos e demais manifestações com caráter formal.

No entanto, há uma grande pressão social em se valorizar a segunda, e em várias situações é considerado praticamente imoral se expressar segundo a primeira em desacordo com a norma culta; os indivíduos que ousam são depreciados como ignorantes, incultos, burros, mal-educados e sabe-se lá o que mais. Principalmente se é algo falado pelas classes mais baixas financeiramente ou com menos acesso à educação formal. E isso ocorre mesmo que todos saibamos que o padrão culto da língua é excessivamente complicado (a ponto de ser computacionalmente difícil para uma pessoa determinar se sua escrita está rigorosamente de acordo com a norma culta), que pouquíssimas pessoas realmente o conhecem em detalhe e com familiaridade, e que raramente se tem uma escolaridade em que o tal padrão é transmitido em sua totalidade e de forma eficiente. Creio que seja extremamente raro, e de difícil ocorrência uma pessoa plenamente capaz de se expressar em total acordo com a norma culta; o que é um contra-senso, afinal de que serve uma formalização que na prática a população não pode sequer conhecer, quanto mais seguir?

Daí eu me pergunto: qual é o sentido de se dizer que uma determinada manifestação linguística é errada? Qual o propósito e a utilidade deste julgamento e discriminação? E mais, por que será que este julgamento é feito tão veemente e mecanicamente?

Acho que a formalização da língua é importante, é necessário que se tenha uma referência de nosso código, tanto para fins educativos, oficiais como para a unidade de nossa comunicação (imagine se não houvesse dicionários!). Mas não acho que a tal língua culta seja superior em valor do que a língua falada no cotidiano. Aliás, se houver uma diferença de valor que seja a favor da língua prática, afinal ela é a língua que se fala. A norma culta pode trazer uma porção de informações de valor histórico e etimológico, mas isso não vale sem materialidade, uma língua que não se fala é uma língua teórica, fictícia e sem valor para comunicação.

Se os objetivos da discriminação forem educacionais, forem instruir o sujeito sobre a norma culta que ele desconhece ou adverti-lo sobre a infração indesejada, acho que se está utilizado uma didática muito ruim. Na minha opinião o que existe é um preconceito que como muitos outros vai se propagando pela repreensão, como o pai que censura o filho e o filho que propaga a censura irrefletidamente, ou pior, usado vaidosamente para se auto-enaltecer sobre um sistema de valores frívolo.