Por que damos valor às vidas humanas? Por que achamos que o mundo deva ser justo? Por que devemos nos importar com a natureza? Quais as motivações das pessoas? E que nome dar a todas as coisas da vida que não entendemos, não sabemos descrever, mas com as quais temos de lidar o tempo todo?




O problema da imaterialidade dos valores

por Leo

Estava refletindo sobre as implicações do meu último post e cheguei a um problema. Ele está relacionado a como se determinar se algo é bom ou ruim para alguém.

Se os valores são imateriais, isto é, não têm existência independente existindo somente enquanto houver quem os sustente, então todos os juízos se tornam também dependentes, e assim, parece razoável dizer que uma determinada ação só é boa ou má, benéfica ou prejudicial, se alguém assim a julgar. Uma implicação disto é que ações que destroem valores e juízos, ou que impedem que ocorram, deixam de ser julgadas. Por exemplo, suponha que eu mate alguém (instantaneamente, antes que a pessoa perceba que vai morrer) porque isto convém aos meus interesses; como a pessoa que morreu não é capaz de formular um juízo (supondo que juízos de mortos sejam irrelevantes), o único juízo a respeito do caso seria o meu, e que seria bom, portanto, matar a pessoa foi uma ação boa (quem pode dizer o contrário?). E existem inúmeras outras situações deste tipo, incluindo todo tipo de morte ou incapacitação mental intencional, roubar oportunidades e objetos de valor das pessoas sem que elas saibam (como o desvio de dinheiro público), impedir a divulgação de informação e a formação de senso crítico.

Isto me parece ser algo suficientemente contra-intuitivo para nos preocuparmos. Em suma, estou dizendo que não faz sentido dizer que algo é bom ou ruim para alguém se ninguém fez este juízo, esta proposição não tem nenhuma realidade, não ocorreu em nenhum lugar, é um crime sem vítima, um jogo sem jogador. Note que não estou falando de como as coisas devem ser, estou falando de como elas são; se não há ninguém para julgar algo como bom ou ruim não há tal juízo.

Isto é contra-intuitivo porque nossa moral não considera apenas juízos que ocorrem; nossa noção de certo e errado em geral é baseada numa opinião hipotética do outro, mesmo que o outro não exista realmente. Também avaliamos contrafactuais, isto é, situações possíveis, mas que de fato não ocorreram, ou ainda não ocorreram. Assim, embora estas sejam noções importantes na moral, elas não parecem existir na ética. É interessante notar que as religiões não têm este problema, elas o resolvem por meio de um referencial moral privilegiado, isto é, uma moral absoluta ("material") ou alguém onipresente julgando cada evento do universo. É natural que a moral inclua julgamentos contrafactuais, afinal, ela serve para que convivamos bem em sociedade, o que exige que possamos prever e testar possibilidades condicionais.

Resumindo, estou tentando mostrar que embora consideremos moralmente erradas algumas ações envolvendo a destruição de valores (como assassinatos súbitos), elas não parecem ter relevância ética, uma vez que não há quem as julgue como prejudiciais. Mas não creio que isto signifique que nossa moral é inadequada, creio que isto indique que há mais a se considerar, que este raciocínio ignore alguma coisa. Não parece nada razoável que matar ou incapacitar as pessoas seja algo bom desde que seja feito de modo que não tenham como reagir (por exemplo, remover parte do cérebro de uma pessoa sob anestesia). Entretanto não se pode dizer que em algum momento ela tenha sido ruim para alguém. O mesmo vale para o roubo de oportunidades. Onde está a falha?

Não sei. Mas acho que há algumas pistas. Suponha que existam cientistas muito interessados em realizar um experimento científico cujo resultado seja potencialmente útil ao progresso da humanidade, porém tenha alguma chance de extingui-la instantaneamente (qualquer semelhança com certos experimentos reais é mera coincidência), uma espécie de roleta russa da humanidade. Se o experimento der certo, teremos um benefício, se der errado, teremos a eliminação de todos os valores, e portanto algo não avaliado. Como argumentei no meu post anterior, a existência de valores é o que sustenta nossa motivação de vida, e não há sentido da existência humana fora deles, de forma que a extinção de valores é a pior coisa que pode ocorrer, num certo sentido, mesmo não tendo um valor interno ao sistema, e portanto algo que deveríamos considerar como eticamente indesejável, algo muito prejudicial.

Talvez este seja um indício de que não podemos definir o valor ético apenas em função dos valores morais dos sujeitos de um dado instante, e que a ética como normalmente a concebemos requer necessariamente algum outro tipo de fundamento, como alguma forma de valoração dos próprios valores, alguma dependência de instantes anteriores, probabilidades, trajetória, relações causais ou alguma outra coisa. Para mim a questão está em aberto.

Minha crise de valores II

por Leo

Esta não é verdadeiramente uma segunda crise, é muito mais o desenvolvimento natural da primeira, agora que compreendo um pouco melhor o problema que propus.

Meu problema agora não é ter percebido que nossos valores são, como havia dito, "racionalizações sociais desajeitadas de resquícios evolutivos desadaptados à realidade em que vivemos", na verdade, resquícios evolutivos não são uma expressão adequada, como vou argumentar, pois na verdade são o que sustentam tudo o que somos. Tampouco é, como no primeiro, uma questão prática em relação a como me conduzir. Acho que este problema já está se resolvendo. Meu problema é aceitar as implicações do que tentarei explicar.

Valores são coisas às quais atribuímos um valor, bom ou ruim, certo ou errado, válido ou inválido, agradável ou desagradável, sejam elas o que forem: prazer, sexo, conversar, comer, dormir, dinheiro, chocolate, comprar roupas, ficar famoso, ajudar as outras pessoas, matar, violentar, sofrer, morrer. Enfim, são coisas que representam algo bom ou ruim para nós numa dada circunstância. Não precisam ser declarados, nem mesmo conscientes, basta que influenciem julgamentos e decisões.

Valores são o que dão sentido a nossa conduta, são o que nos motivam. Sem valores não teríamos por que fazer nada em particular, seríamos apenas máquinas sem um uso próprio, sem um propósito. Valores são o que fazem com que procuremos comida, queiramos descansar, procuremos pessoas, compremos coisas, persigamos sonhos. São o que dirigem nossas decisões, o que faz o mundo rodar. Nem tudo o que fazemos, no entanto, está prontamente associado a valores; muito de nosso comportamento ocorre de forma impensada, inconsciente, automática ou involuntária, que não necessariamente se faz por meio valores.

No entanto, estes valores tem de vir de algum lugar, e ao meu ver, todos eles começam no nosso hardware, valores são, em última instância, usos sofisticados de um aparelho biológico feito para motivar comportamentos de sobrevivência. Nós nascemos já dotados de uma porção deles; já sentimos fome, sede, sono, dor, prazer, medo e muitos outros impulsos e necessidades. E o repertório vai se estendendo a cada dia, associamos a satisfação dessas necessidades com alguns objetos, passamos a ter respostas emocionais mais estruturadas, desenvolver sentimentos, aprendemos o que é permitido e não permitido, o que é desejado e repudiado pelos outros, o que é considerado bom e ruim pelas diversas pessoas ao nosso redor. Até que por estes processos de organização, incentivo, reforço, imitação e posteriormente reflexão, acabamos formando um grande e complexo sistema de valores, que leva ao complexo e diversificado comportamento que vemos nas pessoas por aí.

Valores têm características curiosas, por exemplo, têm uma natureza relativa, dependente do contexto e do valor das demais coisas. Afinal, o julgamento de valor é bastante comparativo, analógico. Também são dependentes de relevância, acontecimentos distantes tem um valor menor do que acontecimentos próximos. São bastante sensíveis a crenças (basta ver a bolsa de valores) e a emoções. Há muitas outras características peculiares, mas só quero mostrar que valores não são objetos platônicos, não são contruções racionais bem fundamentadas. Valores são contruções mentais, psicológicas, cognitivas, com o fim de favorecer tomadas de decisões eficientes. E é claro, sujeitas ao modo de operar da evolução natural; é um sistema com uma porção de falhas, mas bom o suficiente para a maioria dos problemas de sobrevivência na história evolutiva humana.

Assim, digo que os valores têm uma natureza pragmática. Alguns valores existem e persistem porque são fortemente ligados a nossa constituição biológica, como sono, fome e sede, e dificilmente sofrerão mudanças, porém outros ocorrem porque os aprendemos durante nossa vida, seja por tentativa e erro, seja por imitação, seja porque alguém nos ensinou, e de alguma forma mostraram alguma utilidade prática, ainda que ilusória (a utilidade de um valor é julgada em relação aos valores previamente adotados e ao seu sucesso em auxiliar na resolução de problemas). Valores que se mostram completamente ineficazes são rapidamente desvalorizados.

Como já deve estar evidente, estou sendo bem geral, falando de um aspecto muito amplo de nossas vidas. Valores morais, materiais, sentimentais, estéticos, sexuais, todos eles entram no pacote (ainda estou um pouco em dúvida se crenças são valores ordinários, ou se são de alguma forma diferentes ou mais fundamentais que os outros tipos). E isto tem implicações dramáticas.

Isto significa que o valor é, em última análise, determinado pelo seu valor prático na vida pessoal. Desta maneira, todo o complexo de valores morais sustentados em nossa sociedade, refletem de alguma forma, crenças sobre o seu valor prático (observe, por exemplo, que não pecar para alcançar o reino dos céus é algo de utilidade extremamente prática, se o indivíduo acreditar). Além disso, são coisas que não tem nenhuma existência independente; a existência de um valor é a existência de pessoas que os adotem. Cometer certa ação é errada, se houver pessoas segundo as quais aquela ação tenha um valor negativo. Caso contrário, a ação é completamente desprovida de qualquer valor e é meramente mais um fato do mundo. Isto relativiza brutalmente todos os valores humanos. Todas as coisas que consideramos certas, verdadeiras, bonitas, valiosas, o são desde que nós acreditemos que sejam, o que, por sua vez, depende de nosso julgamento de sua utilidade prática, ou de instintos biológicos que forcem seu valor. Em resumo, nossos valores são os que são porque nós temos esta determinada constituição biológica e porque, na história de nossa sociedade, estes valores tiveram utilidade prática na vida dos seus indivíduos.

Voltando a questão prática de como se conduzir, acho que esta idéia por si já determina mais ou menos uma conduta, o valor de nossas ações é o valor que as pessoas (nós incluídos) emprestam a elas, nem mais nem menos. Como a decisão da ação é tomada numa perspectiva individual, a consideração do valor que as demais pessoas atribuem, fica a critério do sujeito, de acordo com a utilidade prática que ele veja nisso (o que naturalmente depende de seus outros valores, suas metas, etc).

O problema desta vez vem porque, se o desenvolvimento do homem e da sociedade humana foi impulsionado por valores histórico-biológicos, a existência humana se torna basicamente este amontoado de valores. Nós vivemos para satisfazer valores, e criamos valores para viver. Se por algum motivo perdêssemos a capacidade de dar valor as coisas, tudo perderia seu significado, e a existência do mundo humano deixaria de existir. Assim, são os próprios valores que sustentam nossa existência, nosso significado, o sentido do desenvolvimento das sociedades. E por esta razão, são a coisa que garante nossa própria existência, são uma coisa muito importante, por mais que esta importância exista por ela mesma.

O que eu não entendo é, se a nossa existência depende da existência dos valores, que valores deveríamos escolher? O nosso progresso em satisfazê-los eficientemente (creio que isto seja o que ocorre com o uso intensivo de certas drogas, por exemplo), e em mudar nossa constituição biológica não provocará a destruição da nossa existência? Como fazer para que o nosso progresso em suprir nossas necessidades e desejos não destrua nossa própria existência?
Parece-me muito paradoxal e circular que o sentido de nossas vidas seja dado por valores e que por isto nós devamos preservá-los. Existe algum sentido em querermos preservar nossa existência, a não ser por ela mesma? É isso tudo que somos? Somos máquinas cujo sentido é lutar para continuarmos fazendo este sentido?
Isto me faz sentir meio desiludido com a existência, somos apenas isso? O próximo passo na história do universo na criação de entidades que vivem para si mesmas?
Acho que esta é a questão que tenho de amadurecer até minha próxima crise.