Sobre o uso incorreto da língua
por Leo
Há várias vezes que discutimos sem muito resultado sobre a língua (linguagem, idioma) e o que é correto, acho que finalmente consegui expressar o que penso a respeito de maneira clara.
Há duas coisas relacionadas porém completamente diferentes em natureza designadas pela expressão "língua portuguesa".
Uma delas refere-se a um sistema de palavras e significados usado na comunicação e pensamento de uma grande população, uma convenção implícita, o que as pessoas falam, ouvem, escrevem e entendem na prática. Seria um sistema bastante difícil de se formalizar, uma vez que cada um tem uma versão um pouco diferente para si, mas cujas diferenças não chegam a impossibilitar a comunicação (embora possam torná-la difícil às vezes).
A outra refere-se a uma convenção institucionalizada, formalizada, oficial. É um conjunto de palavras, expressões e regras que estabelece o padrão culto da língua. Não sei exatamente quem estabelece, se algum orgão do Estado, a Academia Brasileira de Letras, ou algum outro tipo de instituição. O fato é que se estabelece uma formalização oficial do padrão culto da língua. Seria um pouco relevante saber quem de fato estabelece este padrão, para se saber qual seu status oficial, se é um padrão estabelecido em lei (e que portanto tem força legal e portanto das convenções oficiais da nossa sociedade) ou se é uma convenção estabelecida por alguma comissão autônoma sem força legal oficial, o que faria com que fosse apenas uma referência estética, mas não parte das convenções oficiais.
A primeira língua é ensinada no cotidiano, a segunda nas escolas. A primeira tem uma dinâmica autônoma, quase como ocorre na natureza, em que as palavras mudam lentamente de forma e significado e novas formas surgem o tempo todo, se propagando ou se extinguindo. A segunda é determinada por uma comissão, que pode ou não ter a intenção de aproximá-la da primeira. A primeira é requerida para que as pessoas se comuniquem, a segunda é requerida nos documentos oficiais, concursos e demais manifestações com caráter formal.
No entanto, há uma grande pressão social em se valorizar a segunda, e em várias situações é considerado praticamente imoral se expressar segundo a primeira em desacordo com a norma culta; os indivíduos que ousam são depreciados como ignorantes, incultos, burros, mal-educados e sabe-se lá o que mais. Principalmente se é algo falado pelas classes mais baixas financeiramente ou com menos acesso à educação formal. E isso ocorre mesmo que todos saibamos que o padrão culto da língua é excessivamente complicado (a ponto de ser computacionalmente difícil para uma pessoa determinar se sua escrita está rigorosamente de acordo com a norma culta), que pouquíssimas pessoas realmente o conhecem em detalhe e com familiaridade, e que raramente se tem uma escolaridade em que o tal padrão é transmitido em sua totalidade e de forma eficiente. Creio que seja extremamente raro, e de difícil ocorrência uma pessoa plenamente capaz de se expressar em total acordo com a norma culta; o que é um contra-senso, afinal de que serve uma formalização que na prática a população não pode sequer conhecer, quanto mais seguir?
Daí eu me pergunto: qual é o sentido de se dizer que uma determinada manifestação linguística é errada? Qual o propósito e a utilidade deste julgamento e discriminação? E mais, por que será que este julgamento é feito tão veemente e mecanicamente?
Acho que a formalização da língua é importante, é necessário que se tenha uma referência de nosso código, tanto para fins educativos, oficiais como para a unidade de nossa comunicação (imagine se não houvesse dicionários!). Mas não acho que a tal língua culta seja superior em valor do que a língua falada no cotidiano. Aliás, se houver uma diferença de valor que seja a favor da língua prática, afinal ela é a língua que se fala. A norma culta pode trazer uma porção de informações de valor histórico e etimológico, mas isso não vale sem materialidade, uma língua que não se fala é uma língua teórica, fictícia e sem valor para comunicação.
Se os objetivos da discriminação forem educacionais, forem instruir o sujeito sobre a norma culta que ele desconhece ou adverti-lo sobre a infração indesejada, acho que se está utilizado uma didática muito ruim. Na minha opinião o que existe é um preconceito que como muitos outros vai se propagando pela repreensão, como o pai que censura o filho e o filho que propaga a censura irrefletidamente, ou pior, usado vaidosamente para se auto-enaltecer sobre um sistema de valores frívolo.
Há duas coisas relacionadas porém completamente diferentes em natureza designadas pela expressão "língua portuguesa".
Uma delas refere-se a um sistema de palavras e significados usado na comunicação e pensamento de uma grande população, uma convenção implícita, o que as pessoas falam, ouvem, escrevem e entendem na prática. Seria um sistema bastante difícil de se formalizar, uma vez que cada um tem uma versão um pouco diferente para si, mas cujas diferenças não chegam a impossibilitar a comunicação (embora possam torná-la difícil às vezes).
A outra refere-se a uma convenção institucionalizada, formalizada, oficial. É um conjunto de palavras, expressões e regras que estabelece o padrão culto da língua. Não sei exatamente quem estabelece, se algum orgão do Estado, a Academia Brasileira de Letras, ou algum outro tipo de instituição. O fato é que se estabelece uma formalização oficial do padrão culto da língua. Seria um pouco relevante saber quem de fato estabelece este padrão, para se saber qual seu status oficial, se é um padrão estabelecido em lei (e que portanto tem força legal e portanto das convenções oficiais da nossa sociedade) ou se é uma convenção estabelecida por alguma comissão autônoma sem força legal oficial, o que faria com que fosse apenas uma referência estética, mas não parte das convenções oficiais.
A primeira língua é ensinada no cotidiano, a segunda nas escolas. A primeira tem uma dinâmica autônoma, quase como ocorre na natureza, em que as palavras mudam lentamente de forma e significado e novas formas surgem o tempo todo, se propagando ou se extinguindo. A segunda é determinada por uma comissão, que pode ou não ter a intenção de aproximá-la da primeira. A primeira é requerida para que as pessoas se comuniquem, a segunda é requerida nos documentos oficiais, concursos e demais manifestações com caráter formal.
No entanto, há uma grande pressão social em se valorizar a segunda, e em várias situações é considerado praticamente imoral se expressar segundo a primeira em desacordo com a norma culta; os indivíduos que ousam são depreciados como ignorantes, incultos, burros, mal-educados e sabe-se lá o que mais. Principalmente se é algo falado pelas classes mais baixas financeiramente ou com menos acesso à educação formal. E isso ocorre mesmo que todos saibamos que o padrão culto da língua é excessivamente complicado (a ponto de ser computacionalmente difícil para uma pessoa determinar se sua escrita está rigorosamente de acordo com a norma culta), que pouquíssimas pessoas realmente o conhecem em detalhe e com familiaridade, e que raramente se tem uma escolaridade em que o tal padrão é transmitido em sua totalidade e de forma eficiente. Creio que seja extremamente raro, e de difícil ocorrência uma pessoa plenamente capaz de se expressar em total acordo com a norma culta; o que é um contra-senso, afinal de que serve uma formalização que na prática a população não pode sequer conhecer, quanto mais seguir?
Daí eu me pergunto: qual é o sentido de se dizer que uma determinada manifestação linguística é errada? Qual o propósito e a utilidade deste julgamento e discriminação? E mais, por que será que este julgamento é feito tão veemente e mecanicamente?
Acho que a formalização da língua é importante, é necessário que se tenha uma referência de nosso código, tanto para fins educativos, oficiais como para a unidade de nossa comunicação (imagine se não houvesse dicionários!). Mas não acho que a tal língua culta seja superior em valor do que a língua falada no cotidiano. Aliás, se houver uma diferença de valor que seja a favor da língua prática, afinal ela é a língua que se fala. A norma culta pode trazer uma porção de informações de valor histórico e etimológico, mas isso não vale sem materialidade, uma língua que não se fala é uma língua teórica, fictícia e sem valor para comunicação.
Se os objetivos da discriminação forem educacionais, forem instruir o sujeito sobre a norma culta que ele desconhece ou adverti-lo sobre a infração indesejada, acho que se está utilizado uma didática muito ruim. Na minha opinião o que existe é um preconceito que como muitos outros vai se propagando pela repreensão, como o pai que censura o filho e o filho que propaga a censura irrefletidamente, ou pior, usado vaidosamente para se auto-enaltecer sobre um sistema de valores frívolo.
8 Comentários:
Belo ensaio sobre a língua, um questionamento importante que irrefletidamente deixamos de lado.
A genialidade de Guimarães Rosa foi em grande parte concretizar a abstração e multiplicidade da língua sertaneja mineira dando corpo, como em Grande Sertão Veredas, à inculta e subjetiva expressividade cabocla na gélida e formal língua culta. Ganhou a cátedra da Academia por isso!!
P
ei leo, talvez vc julgue contraditório de minha parte, mas concordo. e a norma culta é estabelecida em gramáticas, dicionários e livros quetais escritos geralmente por acadêmicos, o que costuma gerar ambigüidades, dado que não há A Referência para o português correto. isto reforça seu ponto sobre a impossibilidade de dizer que algo é errado. contudo, discrepâncias muito grandes entre o nível de formalidade de um texto e o contexto em que ela se insere podem gerar revolta e acusações de incorreção, o que, na minha opinião, é aceitável.
Léo, o que você acha de usarmos várias línguas em um único texto para mais precisamente emitirmos nossas opiniões?
Como você traduziria AWARENESS para explicar que você está alerta, antenado em tudo o que está acontecendo em seu interior e no ambiente em que se encontra agora e em todos os momentos importantes de sua vida?
Acho ótimo, desde que todos os seus leitores conheçam ambas as línguas, uma vez que isso limita o acesso à compreensão total do texto a estes.
Eu traduziria awareness como ciência, no sentido de estar ciente de, perceber. Se quer falar de uma "total awareness" pode falar de uma ciência global ou total mesmo. Mas sei lá, não conheço nada de gestalt.
Leo, a linguagem é um dos condicionantes do conhecimento.
Mais do que nunca a ciência está a requerer novas palavras porque novos conceitos são introduzidos usando velhos paradigmas com palavras que nos aprisionam o pensamento no velho usual, conhecido, impedindo a clareza do inédito a ser apreendido. Espaço-tempo do Einstein é um exemplo: as palavras espaço e tempo pertencem ao vocabulário de Newton e Aristóteles e isso obscurece o entendimento do novo conceito, o da Relatividade, que se refere a uma única coisa e não a duas - tempo e espaço. Precisamos de uma nova palavra que se refira à gestalt totalizadora percebida pela awareness de Einstein, E=mc², que envolva inclusive a curvatura da nova universometria. Você concorda que exista essa barreira?
Acho que é importante manter a clareza. Se para este fim for necessário criar novas palavras que assim seja. Mas acho que há um excesso de terminologia por aí, acho que deveríamos procurar aproveitar bem o vocabulário que temos.
Acho que este post pode ser resumido à pergunta: Qual a finalidade (a efetiva e a suposta) do moralismo linguístico?
E a algumas insinuações sobre o preconceito e a discriminação linguística.
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