Por que damos valor às vidas humanas? Por que achamos que o mundo deva ser justo? Por que devemos nos importar com a natureza? Quais as motivações das pessoas? E que nome dar a todas as coisas da vida que não entendemos, não sabemos descrever, mas com as quais temos de lidar o tempo todo?




Algumas reflexões sobre o problema mente-corpo

por Leo

(também publicado no blog Brainstormers)

O problema mente-corpo questiona como a mente, aparentemente imaterial, se relaciona com o corpo, isto é, como ela depende dele e quais as relações causais entre os dois. Falarei mais especificamente da relação da consciência fenomenal, que compreende as sensações, os qualia, enfim, aquilo que se sente. De que maneira e onde nosso corpo gera estas sensações imateriais? Elas são em algum sentido independentes dele? Poderíamos construir máquinas com estas sensações?

Vou assumir nesta reflexão que o que chamamos de consciência fenomenal não é uma ilusão, isto é, que ela tem algum tipo de realidade objetiva que corresponde ao que percebemos subjetivamente como consciência e que dá significado a frases como "ele é consciente" e "cachorros devem ser conscientes".

Como mencionei anteriormente, acho que um fato potencialmente muito importante na questão da consciência fenomenal (qualia) é que cada um de nós reconhece tê-la e experenciá-la, e sabe portanto que tem qualia, mostrando que se não é fisicamente necessário, é pelo menos efetivo que em nós seres humanos os qualia estão associados a processos físicos no cérebro.

No meu entendimento isto torna o chamado argumento epifenomenalista pouco plausível. Ele diz que poderia ser que o cérebro de alguma forma gere consciência sem que esta tenha qualquer consequência causal sobre ele, ou seja, o cérebro provoca a consciência, mas a consciência nada faz sobre o cérebro. Ora, se a consciência não atua sobre o cérebro, é extremamente improvável, surpreendente e coincidental que nosso cérebro atue como se fosse capaz de "percebê-la". Além disso, se nosso reconhecimento e relato de consciência é consequência isolada do cérebro e nada tem a ver de fato com ela, não temos nenhum motivo para crer que temos alguma consciência, e postular que ela exista se torna irrelevante. Assim, enquanto é possível que o cérebro gere consciência sem que isto tenha nenhuma consequência causal necessária sobre ele, esta proposta parece não ter nenhum suporte*.

Suponho então que o processo da consciência tal como ocorre no cérebro humano tem consequências físicas. Assim sendo, se supusermos que o sistema físico do cérebro pode ser simulado computacionalmente com uma razoável precisão, a simulação deverá ter exatamente o mesmo comportamento de um cérebro, inclusive o de reconhecer a própria consciência. Como supomos que este reconhecimento se dava originalmente em função do próprio fenômeno, temos de admitir que a simulação simula também pelo menos os processos físicos provocados pela consciência.

Vamos analisar então estas suposições, cenários possíveis e quais suas consequências sobre o entendimento da natureza da consciência (1=sim 0=não):

É possível simular o cérebro num computador convencional qualquer com exatidão suficiente para reconhecer a própria consciência?
0. É possível simular o cérebro em algum outro sistema físico artificial (por exemplo, num computador quântico ad hoc)?
0.0. Então o funcionamento do cérebro deve depender de alguma propriedade muito especial do cérebro estranhamente irreprodutível em sistemas artificiais (possivelmente fora da física convencional).
0.1. Então o funcionamento do cérebro depende de propridades físicas muito especiais que não talvez não possam ser reproduzidas em sistemas computacionais quaisquer. Porém, são reprodutíveis em alguns sistemas físicos.
Neste caso, a consciência pode ser um processo material (por exemplo algum tipo de reação, partícula ou campo), possivelmente revelando novos princípios físicos, ou hipercomputacional (requer capacidade computacional superior a de uma máquina de Turing). Em qualquer dos casos, poderemos dentro dos seus limites descobrir as relações entre este tal processo ou computação e os estados conscientes no nosso cérebro e contruir máquinas conscientes, embora possa ser bastante difícil e trabalhoso.
1. Os processos físicos relevantes às consequências da consciência são suficientemente simuláveis, mas... estamos simulando juntamente também a própria consciência, além de seus efeitos físicos?
1.0. Epifenomenalismo: Sistemas podem apresentar todas as consequências de se ser consciente porém sem tê-la. De maneira que não temos nenhuma evidência de que exista nenhuma outra consciência além da nossa (se é que podemos confiar na existência da nossa)*.
1.1. O computador da simulação é plenamente consciente e a consciência é portanto uma propriedade funcional dos sistemas físicos. Podemos construir seres conscientes à vontade, bastando que descubramos qual é esta propriedade e como ela se associa ao sistema de reconhecimento de estados conscientes no nosso cérebro.

* Vou admitir uma possibilidade um pouquinho plausível para a consciência que ainda tornaria uma forma de (pseudo)epifenomenalismo plausível: a consciência poderia ser um processo que enquanto no nosso cérebro ela certamente tem consequências causais, elas são muito sutis e dependentes de propriedades muito específicas e delicadas da arquitetura do nosso cérebro (porém ainda presentes na maioria de nós). De maneira que um sistema físico que reproduzisse o cérebro pudesse reproduzir a arquitetura grossa suficiente para o comportamento de reconhecimento da consciência, mas insuficiente para que ela provocasse consequências causais sobre ele. Mas acho que se trata de uma hipótese quase tão implausível quanto a primeira.

Como argumentei, acho o epifenomenalismo implausível, mas creio que infelizmente não temos maneiras de refutá-lo; a pergunta 1 não me parece ser empiricamente testável. A possibilidade de o funcionamento do cérebro depender de alguma propriedade muito especial possivelmente fora do nosso conhecimento físico convencional (por exemplo, a necessidade de uma alma encarnada) também parece possível, embora dificilmente confirmável (mesmo que descobríssemos o fenômeno bizarro, seria necessário um princípio mais fundamental para garantir que ele é necessário para a consciência em todos os sistemas físicos).

Portanto, se não cometi nenhum erro, vemos que se admitirmos que a consciência fenomenal de fato existe, e que não haja uma razão muito misteriosa para não sermos capazes de simular o cérebro, provavelmente seremos capazes de decifrar os princípios que vinculam a consciência fenomenal com seus substratos, e construir máquinas conscientes, provavelmente também possibilitando que futuramente as consciências humanas vivam eternamente na forma de máquinas, como prevê Kurzweil, entre vários outros.

Obs: Meu palpite é que somos completamente simuláveis por computadores convencionais (1.1).